Eu não me importo que se divulgue pelos 56 milhões de alto-falantes de PC que já pisei muito na bola: já devorei uma barata, pratiquei pentatlo na sala de casa, lotei vários varais com cuecas sujas e até planejei ser senador no futuro. Porém, todos esses episódios foram meros incidentes do processo evolutivo infantil que culmina no processo mais humano de todos: a comunicação. A fala é a materialização mais simples dos pensamentos, e por isso meus pais estavam tão ansiosos em me ver falar ao invés de agir sem pensar.
Eu posso ter feito duas ou doze atrapalhadas por aqui na minha fase ‘cinema-mudo’, mas se alguém me acusar de ter tomado água do poleiro do louro ou de ter colocado um passarinho pra piar na minha boca para apressar a fala, eu quebro a porta das duas gaiolas. De novo.
Se algum de vocês tem uma casa feita de chocolate com biscoito, gosta de caramelizar maçã do amor com cicuta, fala na frente do espelho (e ele responde!) ou cria um gato chamado Satanás e mora no apartamento n.º 71, deve saber bem que eu estou falando de ‘bruxarias’. No Brasil conhecidas como ‘simpatias’. Na verdade, só não consegui evitar a velha simpatia de beber a água da chuva de janeiro em jejum. Até porque tem tido tanto temporal nesse mês que deu infiltração justamente na parede da sala que tem o reboco mais gostoso! E aí foi de tabela.
Consequência desse exótico incidente culinário - ou causa natural da inexorável providência que permeia a raça humana, os papagaios e o grilo falante - o resultado é que, depois de exatos 2 anos, menos de 10 meses, e mais de 14 de horas de sono desta noite, eu provei a todos que, finalmente, sou ELOQUENTE...
Não vou esconder o assombro que minha repentina voz de Cid Moreira com laringite (por causa da leve sonequinha anterior) causou quando proferi: “Telo leite di café na mamadela, mamãezinha”. Papai, do fundo do seu ateísmo, até insinuou um sinal da cruz na hora. Só não se sabe se foi agradecendo pela benção da minha fala ou exorcizando aquele ser de 97 cm que surgiu do nada no escuro do quarto arrastando um travesseiro em uma das mãos e o velho Peposo na outra enquanto ronronava por seu desjejum.
Desse dia em diante eu passei não só a falar, mas também a gritar, reclamar, apelar, exigir, resmungar, lamentar, convencer, ameaçar, caluniar, comover, xingar, azucrinar e blasfemar. Tudo moderadamente. Porém, a surpresa maior foi descobrir que, além de todas as recompensas da comunicação verbal, eu também era capaz de "cantar". Nada muito arrojado, como uma Susan Boyle inspirada, mas até melhor que muita ‘segunda voz‘ de dupla sertaneja.
Inaugurando essa fase esplendorosa de intérprete infantil, nada mais conveniente do que um clássico sucesso atemporal com insuperável recorde de reproduções em milhares de versões, da célebre compositora Bertha Celeste: Parabéns a Você virou meu hit de verão. Só que em versão reduzida e remixada, repetindo estrofes e resumindo frases.
E agora virou rotina: mamãe adora, e pede bis; papai acorda, e pede paz. Eis meu público mais fiel, por enquanto. E esse é também o único tipo de simpatia que realmente me agrada.