terça-feira, 18 de maio de 2010

COMO ANDA MINHA VIDA PRIVADA

Frequentemente, o papai usa um termo parnasianisticamente culto para expressar indignação com alguma atitude ou evento que contrarie a sua noção de etiqueta – que não é, digamos, tão requintada quando um Armani. O termo soa estranhamente risível por sua entonação gritante ou talvez por sua dicção incomum: DESELEGÂNCIA. Em momentos de choque do papai com a cena motivadora, após alguns segundos de petrificação cardíaca, o substantivo abstrato vem quase sempre acompanhado de uma ênfase rouca na sua sílaba tônica e abundantes gotículas salivares, espalhadas o suficiente para umedecer uma camisa três-quartos na tábua de passar.
Confesso que sou o responsável por 4 em cada 5 “deselegâncias” cometidas em casa, agora potencializadas pelas infecundas tentativas de abolir as fraldas. Não que eu não saiba avisar antes, minhas pronúncias de ‘pipi’ (xixi) e ‘popô’ (cocô) só perdem para minha performance com ‘papá’ (papai ou papar, dependendo da urgência) e ‘pepê’ (chupeta), acontece que são sempre a posteriori do consumatum est (traduzindo ao pé da letra: primeiro espalho o reboco, e só depois contrato o servente). A mamãe – inteiramente elegante neste aspecto – queixa-se muito mais de uma microrrespingada na latrina ou qualquer leve freada adulta do que das constantes enxurradas e atoleiros infantis. Resultado: a densidade demográfica de cuecas por m² no varal de casa já superou o último censo populacional por km² de Bombaim. Todos os Dias.
Nós costumamos receber visitas-surpresas bem frequentemente, e por isso nunca nos surpreendemos com elas. Quase todas acabam por celebrar o mesmo ritual moderno: bebem uma cerveja e falam alto; tomam outras e alteiam o volume; ingerem mais e ‘grugumilham com grandiloquência gutural’; e, enfim, emborcam toda a outra metade dos vasilhames e, roucos e altos, lembram-se de baixar o som da TV para se despedirem sem precisar gritar mais. Como já é previsível outra visita-surpresa dentro de, no máximo, três dias, a única surpresa mesmo fica ao meu encargo para aqueles que se atrevem a tratar-me como bebê de colo. No círculo de amizades da família, isso já ficou conhecido como o jogo da Caioleta Russa, já que ninguém, além de mim, nunca sabe quando vai haver o disparo fatal. E enquanto a mamãe, com todo o garbo de uma gata, limpa o couro da sua cria, o papai não perde a oportunidade de soltar os cachorros:
- Grrrrrrr... Pô, Caio, que deselegância!

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